Living with an ED


Living with an ED

TRIGGER WARNING:

  • Menção de tópicos delicados como anorexia e bolímia;
  • Descrição de experiência pessoal com distúrbios alimentares.

Distúrbios Alimentares: Explicação 

Testemunho


« Acordo de manhã sobressaltada. Tenho o coração aos pulos, mas os olhos recusam-se a abrir, as pálpebras pesadas como chumbo já habituadas a este despertar caótico.


Odeio alarmes. Pelo menos matinais. Não interessa se ponho música clássica ou jazz como o som do toque, sou sempre apanhada de surpresa e sinto que fico stressada o resto do dia. 


Levanto a mão preguiçosamente e vejo as horas. 7:05. Antes de desligar, consigo ler o meu primeiro lembrete diário e, de repente, já não estou mais sonolenta. 

Engulo em seco, respiro fundo. Ponho as meias, pego no outfit que escolhi e sinto um aperto no coração quando no fundo da minha mente surge uma oração silenciosa e desesperada para que as calças me sirvam. Será que comi demasiado ontem à noite?


“NÃO COMAS”, dizem as letras grandes e garrafais que se destacam no ecrã luminoso.


Repito isso para mim mesma enquanto me levanto e arranjo, enquanto olho para o espelho e penteio o cabelo, evitando dar demasiada atenção a como me assentam as roupas. 


Tento despachar-me o máximo possível, quero ter a certeza de que consigo tomar a primeira refeição do dia sozinha. Chego à cozinha e o alarme toca cada vez mais alto só para mim, como se tivesse duas colunas no máximo coladas aos tímpanos.


Apetecia-me granola. Talvez um pãozinho bimbo com manteiga. Só de pensar nisso formo um nó no estômago, nó esse que abafa a fome. Não posso. Não posso mesmo. Afinal de contas, só nos dias de semana é que consigo passar à frente o pequeno-almoço sem ninguém notar, não seria sensato desperdiçar essa oportunidade.


Espalho uns restos de iogurte na taça e meto-a no lavatório, só para que não questionem a minha (falta de) alimentação.


Bebo um copo de leite com café. Se tudo correr bem, agora já só volto a tocar em comida no almoço.


Chego à escola e, no primeiro intervalo, toca outro alarme - “NÃO COMAS, A SAIA NÃO TE SERVE”. Desligo como se nada fosse. Ninguém nota e eu sorrio por fora, ao mesmo tempo que a ansiedade me consome por dentro. A imagem de tentar provar uma saia que não me servia deixa-me de rastos, mas encoraja-me a não aceitar os cereais que a minha amiga me oferece.


Não posso comer. Não posso comer. Não posso comer.


Ultimamente, de vez em quando sinto-me tonta. Parece que vou cair para o lado, ou vomitar, embora não tenha nada no estômago para além do que resta do jantar do dia anterior. Devia estar mais preocupada, eu sei. Mas tudo o que consigo sentir é raiva de mim mesma; do corpo e mente que não me deixam atingir os meus objetivos.


13.15h. Finalmente vou para casa e fico feliz por andar a pé e poder queimar umas calorias extra, talvez as suficientes para abater a dentada que dei no pão da Bia no segundo intervalo ou o croquete que está por vir. Ao almoço, evito hidratos como se fossem a praga. Se por acaso me entusiasmo e dou por mim a devorar uma quantidade preocupante de esparguete, acabo, sem dúvida, agarrada à sanita. Ou ao bidé. Ou ao lavatório. (Um hábito que se infiltrou sorrateiramente na minha vida e agora já é tão normal no meu dia-a-dia como lavar os dentes).


As horas passam.


Esforço-me por não lanchar. É a pior altura do dia, a tarde - quando não tenho atividades tendo a descontrolar-me. Combinações com amigos para ir a um cafezinho ou uma pastelaria são exasperantes, sei que não vou resistir a uma bolacha de chocolate branco quentinha ou um frappuccino carregado de chantilly e açúcar. Invariavelmente, por consequência, também não vou conseguir conter os pensamentos intrusivos que vão chover depois da asneira, nem a necessidade de enfiar os dedos pela goela ou dar um murro no estômago para forçar o vómito quando chegar a casa.


Hoje tenho volley. Consigo escapar a esta tortura, por isso relaxo. Antes de sair de casa, um novo alarme toca. Olho para o telemóvel, sabendo o que me espera, e leio o que deixei programado para mim mesma. “NÃO COMAS”. A minha falta de originalidade persegue-me. Interrompo a melodia calma que destoa da mensagem que traz consigo e sigo para o treino, decidida a não ceder à tentação de devorar meia despensa quando voltar.


Quase cumpro esta promessa pessoal - como duas bolachas digestivas depois do volley. É um progresso das quatro que costumavam fazer parte da minha rotina, mas não consigo deixar de sentir culpa. Talvez consiga desfazer o erro no banho.


A última refeição do dia chega e sento-me à mesa de jantar pronta para um verdadeiro desafio digno da “Missão Impossível”. Nada me garante que consiga escapar os olhares atentos dos meus pais: uns dias saio triunfante, outros em absoluto pânico e a contar os segundos para conseguir ir à casa de banho de forma despercebida.


Vejo-me obrigada a comer arroz.


Oh não.


Acabo a refeição a sentir-me inchada, prestes a levantar voo tal balão de hélio ou tia Marjorie Dursley do Harry Potter.


Vou dar uma vista de olhos à minha imagem no espelho. Estremeço.


Os ataques de ansiedade são recorrentes. Têm vindo a aumentar, verdade seja dita. Analiso a rapariga do outro lado, que me devolve um olhar igualmente intenso e lembro-me do “eu” do sétimo ano. As nódoas negras de quem batia nas ancas aparecem no reflexo, apesar de já não estarem lá. Passo as mãos na cintura, aperto-a, enquanto desejo poder ser menos. Agarro na barriga, nas coxas, nos braços que insistem em manter-se deselegantes com o passar dos anos e choro silenciosamente, ou simplesmente deixo-me consumir pela triste constatação de que, depois de tanto tempo, nada mudou.


Não devia mesmo ter comido as bolachas.


Enjoada e exausta, tento convencer-me de que posso compensar amanhã (“Só tens que passar um bocadinho de fome, tu consegues. Tu consegues, passa fome”); sempre com a dolorosa consciência de que não estou bem, não sou normal, mas sinto-me sozinha e não quero contar a ninguém, porque o medo de que me impeçam de cortar na alimentação é superior ao de aceitar que estou doente. 


Depois de mais uma pesquisa por dietas e workouts milagrosos, vou dormir. Mais uma vez, não estudei nada de jeito, perdida na descoberta de um valor aproximado da quantidade de calorias que ingeri hoje, na procura do cálculo do meu peso ideal e na visualização de uma infinidade de vídeos no youtube de sortudas que conseguiram alcançar o corpo que eu persigo em vão. Fecho os olhos, abafo a sirene que grita falhanço e concentro-me na ideia de que amanhã será melhor, amanhã conseguirei não sucumbir aos impulsos indesejados. Tenho que conseguir.


O despertador toca. Acordo. São 7:05 quando o desligo.


“NÃO COMAS”, relembra-me o telemóvel, para o caso de me ter esquecido por qualquer razão durante a noite.


É o (re)começo de um novo dia. »

Sherlock Blogger


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