Análise psicoanalítica do conto “Capuchinho Vermelho”
Hoje em dia, é raro encontrar alguém que nunca tenha ouvido a típica história da Capuchinho Vermelho.
Existem mil e uma versões deste conto e em todas elas nos deparamos com uma menina “inocente” que, após ter desobedecido às instruções da mãe, é engolida por um lobo que se fez passar pela sua avó. Embora carregue uma lição de vida óbvia sobre a confiança que não se deve dar a estranhos, esta história infantil, sob a visão de Freud, revela apresentar muitos outros significados, bastante mais obscuros do que o que salta à primeira vista.
Assim, decidimos realizar uma análise psicoanalítica à versão dos irmãos Grimm de Capuchinho Vermelho.
A História
Logo no início da narrativa, ficamos a saber o porquê do título escolhido.
É apresentada ao leitor uma menina muito querida, amada por todos mas principalmente pela avó, que, no seu desejo de a mimar, lhe costurou um capuchinho vermelho. A rapariguita gostou tanto do presente que nunca mais tirou a capa, dando, deste modo, origem à sua alcunha de Capuchinho Vermelho.
Certo dia, a mãe da personagem principal encarrega-a de levar um bolo caseiro e uma garrafa de vinho à sua avozinha doente. Antes de a deixar sair, a senhora ordenou-lhe que seguisse sempre a estrada principal, sem fazer qualquer desvio, não fosse ela tropeçar e arruinar as oferendas.
Inicialmente, a menina descansa a mãe com um grande sorriso e a promessa de cumprir as regras impostas. No entanto, a meio caminho é abordada por um lobo trapaceiro.
Como se tratava de uma criança, não o temia e acaba por lhe contar detalhadamente o local para onde se dirige e porquê. Por sua vez, o lobo apercebe-se da oportunidade de comer ambas a avó e a neta e convence Capuchinho Vermelho a enredar pela floresta, com a desculpa de que esta se encontra cheia de lindas flores que a mesma poderia levar à avó.
Assim, a ingénua rapariga desobedece à mãe e afasta-se do caminho, dando tempo ao lobo de chegar a casa da idosa primeiro, devorando-a sem sequer mastigar.
Quando Capuchinho finalmente chega ao seu destino,depara-se com o lobo disfarçado com as roupas da senhora, a cara escondida por de baixo de uma touca de dormir. A neta comenta, admirada, algumas características de tamanho invulgarmente grande que “a avó” apresenta (como as orelhas, as mãos ou a boca) antes de ser engolida pelo lobo de uma só vez.
Nesta versão dos irmãos Grimm, avó e neta são salvas por um caçador que estava de passagem e, ao ouvir o ressonar do lobo vindo do interior da pequena casa, perecebeu que algo de errado se passava. Com efeito, este homem abriu a barriga do animal e não só resgatou as duas vítimas como se lembrou de uma forma de castigar o antagonista, enchendo-lhe o estômago de pedras antes de o voltar a coser – mostrando, assim, ser o herói da história.
Análise
1. A Capuchinho Vermelho
Capuchinho Vermelho aborda alguns dos problemas cruciais que uma rapariga em idade escolar tem de solucionar quando as ligações edípicas persistem no inconsciente, algo que pode levá-la a expor-se perigosamente a possíveis seduções.
Esta personagem principal - que, na verdade, não passa de uma criança – não teme o mundo externo; pelo contrário, ela demonstra apenas ser capaz de reconhecer a sua beleza - é aí que está o perigo. Se o mundo fora do lar e do dever se torna atraente demais, é expectável a regressão de um indivíduo para um comportamento baseado no princípio do prazer - que, presume-se, Capuchinho já havia abandonado em favor do princípio da realidade, graças aos ensinamentos paternos – podendo então ocorrer graves danos e choques.
O dilema entre o princípio da realidade e o princípio do prazer é afirmado explicitamente quando o lobo diz à Capuchinho para tomar mais atenção ao que a rodeia, como as lindas flores ou o canto dos pássaros, ao invés de continuar somente focada no caminho definido pela mãe (como se fosse para a escola). Deste modo, trata-se do conflito existente entre fazer o que gostamos ou o que devemos, sobre o qual a figura materna da menina advertira no início, ao aconselhar a filha a seguir a estrada cuidadosamente, a não se esquecer de ter cuidado com as suas maneiras ou de cumprimentar a avó e muito menos a lembrar-se de ser bisbilhoteira. Assim, a mãe estava ciente das inclinações da Capuchinho para se desviar do caminho conhecido ou espiar pelos cantos para descobrir os segredos dos adultos.
Adicionalmente, a ideia de que Capuchinho lida com a ambivalência infantil entre viver pelo princípio do prazer ou pelo da realidade é sustentada pelo facto da mesma só parar de colher flores quando já não consegue carregar mais consigo. Apenas nesse momento a criança se lembra do seu objetivo inicial, ou seja, só quando apanhar flores deixou de ser agradável, o Id em busca de prazer recuou e Capuchinho tornou-se ciente de suas obrigações.
Por outro lado, é possível verificar-se que esta menina sofre a tentação; uma vez que, se não hoivesse algo nela que apreciava o Lobo Mau, esta não teria confiado nele, nem este teria qualquer poder sobre ela. Por conseguinte, é importante entender a natureza do mesmo, mas ainda mais importante é aprender o que o torna atraente para a rapariga.
Na verdade, o perigo para Capuchinho é a sua sexualidade por desabrochar para a qual esta ainda não está emocionalmente preparada. Pessoas psicologicamente desenvolvidas o suficiente para as experiências sexuais podem dominá-las e crescer com isso. Por oposição, uma pessoa imatura, que ainda não está pronta para o sexo, mas é exposta a uma experiência que suscita fortes sentimentos sexuais, recai nas formas edípicas de lidar com ele. Isto conduz a que esse mesmo indivíduo acredite que só pode vencer no sexo se se livrar dos competidores mais experientes - daí Capuchinho dar intruções tão específicas ao lobo de como se chega a casa da avó.
Porém, esta atitude mostra também a sua ambivalência: ao orientar o animal para a residência da familiar, a criança parece estar a tentar transmitir uma mensagem do género “Deixe-me sozinha e vá ter com a minha avó – uma mulher madura que, ao contrário de mim, será capaz de lidar com o que representa".
Capuchinho Vermelho, quando cai na sedução do lobo para agir de acordo com o princípio do prazer em vez do da realidade, implicitamente retorna a uma forma de existência anterior e mais primitiva. Numa forma típica dos contos de fadas, o seu retorno para um nível de vida mais primitivo é exagerado, indo até à existência pré-natal no útero (quando é devorada pelo lobo), já que a criança pensa em extremos.
2. A Avó
Aquando a leitura do destino trágico da Avó, surge a questão sobre o porquê de isso ter acontecido. Porque teve a inocente senhora que sofrer as mesmas consequências que a neta devido a um erro desta última?
Este detalhe está relacionado com a visão que as crianças têm da morte – que se traduz na ideia de que o falecido se traduz numa pessoa que já não se encontra disponível, no sentido em que já não tem mais serventia. Os avós devem ter utilidade para a criança; devem ser capazes de protegê-la, ensiná-la e alimentá-la – caso contrário, serão reduzidos a uma forma primitiva de existência, tal como aconteceu com a Avó da história em análise. Como a idosa não foi capaz de lidar com o lobo, teve o mesmo destino que a menina.
3. Lobo
Neste conto, o sexo masculino é de importância capital, tendo sido dividido em duas figuras opostas: a do sedutor perigoso que, se cedermos a ele, se transforma no destruidor da felicidade (o Lobo); e a da figura paterna responsável, forte e salvadora (o Caçador).
De facto, é como se Capuchinho tentasse entender a natureza contraditória dos homens ao vivenciar todos os aspetos da personalidade deste: as tendências egoístas, associais, violentas e potencialmente destrutivas do Id (o lobo); e as propensões altruístas, sociais, reflexivas e protetoras do Ego (o caçador).
Por um lado, o Lobo representa todas as tendências primitivas que subsistem dentro de nós. Abandonando as virtudes da idade escolar de "caminhar atentamente" como exige a sua tarefa, Capuchinho reverteu à posição da criança em busca de prazer edípico. Adicionalmente, ao ceder às sugestões do lobo, deu a este a oportunidade de devorar a avó. Aqui, a história concentra-se nas consequências que advêm da permanência de dificuldades edípicas irresolvidas nas pessoas: foram a ingenuidade excessiva e a falta de maturidade ou de capacidade de restrição perante uma situação que proporcionará prazer da Capuchinho que conduziram à devoração desta e da Avó.
Por outro lado, o Lobo externaliza os processos internos da criança púbere, sendo a representação da maldade que a mesma sente quando vai contra os conselhos dos pais e permite-se tentar, ou ser tentada, sexualmente.
4. O Caçador
O Caçador trata-se do herói da história, destacando-se por contrastar claramente tanto com a personagem da Capuchinho como com a do Lobo.
Em primeiro lugar, ao contrário da protagonista, que cede às tentações do Id, o Caçador não permite que as suas emoções o dominem: apesar de o seu desejo imediato ser matar o Lobo, apresenta-se capaz de conter os seus impulsos e formalizar a hipótese de que talvez ainda haja salvação para a Avó (este não tinha como saber que a criança também havia sido devorada). Assim, o seu Ego (ou razão) afirma-se - não obstante das instâncias do Id (raiva contra o lobo) - e este homem percebe que é mais importante tentar resgatar a idosa do que ceder ao seu ódio e matar o lobo imediatamente.
Isto faz do Caçador a figura mais atraente para o leitor, uma vez que salva os bons e castiga o mau. Todas as crianças encontram dificuldades em obedecer ao princípio da realidade e reconhecem facilmente nas figuras opostas do lobo e do caçador, o conflito entre o Id e os aspetos do Superego da personalidade. A ação violenta do caçador (abrir o estômago) serve aos propósitos sociais mais elevados (salvar as duas mulheres). A criança sente que ninguém aprecia que as suas tendências violentas lhe pareçam construtivas, mas a história demonstra que estas podem ser.
No entanto, embora o caçador seja crucial para o final da história, a verdade é que não é fornecida qualquer informação sobre ele, muito menos sobre a existência de qualquer tipo de relação entre ele e as duas personagens femininas que salva. Como durante o conto não se menciona o pai, isto sugere que o mesmo está presente, mas de forma velada.
É comum que uma menina acredite que o pai a vai resgatar de todas as dificuldades, especialmente das emocionais – sendo que estas expectativas, segundo a teoria desnvolvida por Freud, são uma das consequências do desejo inconsciente que crianças do sexo feminino têm de seduzi-lo e ser seduzidas por ele. "Sedução" aqui significa o desejo de uma rapariga pequena de que o pai a ame acima de tudo e todos e de que ele tenha esse mesmo desejo em relação a ela.
Conclui-se, assim, que a figura paterna está representada em Capuchinho Vermelho através do Caçador, na sua vertente resgatadora e protetora; mas também do prórpio Lobo, numa outra vertente mais relacionada com a externalização dos perigos de sentimentos edípicos reprimidos.
5. Simbolismo da Consequência
É importante realçar que o conto deixa claro que as duas vítimas não morreram ao serem engolidas. De facto, ao ser libertada, a primeira exclamação da Capuchinho faz referência ao medo sentido pela mesma qaundo estava presa na escuridão da barriga do lobo. Para uma pessoa sentir emoções como o medo é necessário estar viva, uma vez que a morte implica a ausência de qualquer tipo de sentimentos ou pensamentos.
Por sua vez, o medo da Capuchinho era da escuridão porque, devido à sua desobediência, esta perdera o estado mais elevado de consciência, que iluminava o seu mundo. É como uma criança que, sabendo que errou, ou perante a crença do desaparecimento da proteção fornecida pelos pais, se sente consumida por uma escuridão derivada de incertezas e inseguranças.
No entanto, algo de bom advém desta experiência assutadora. Após ser libertada da escuridão, a Capuchinho demonstra-se mais matura e capaz de apreciar as coisas sob uma nova luz, tal como de compreender melhor as experiências emocionais que tem de dominar e as que tem de evitar para que não a esmaguem.
Deste modo, em histórias como "Capuchinho Vermelho" a criança começa a entender – pelo menos a um nível pré-consciente – que só as experiências esmagadoras despertam sentimentos internos correspondentes com os quais não podemos lidar. Dominando-os, não precisamos de temer o encontro com o lobo (o mal) nunca mais.
6. A Capa
Em Capuchinho Vermelho, tanto no título como na alcunha da menina se enfatiza a cor vermelha, que a personagem principal usa declaradamente.
É preciso ter em conta que vermelho é a cor associada não só a emoções violentas, como a sensualidade ou a desejos sexuais. Assim, a capa de veludo carmesim que a idosa oferece à neta pode ser encarada como o símbolo de uma transferência prematura da atração sexual.
Para além disso, a utilização do diminutivo da palavra “capuz” no título do conto sugere que a dona do mesmo é pequenina – demasiado pequena para lidar com aquilo que a cor do mesmo simboliza e com o que a sua utilizção atrai.
7. Conclusão
Em suma, tomando como ponto de partida a visão de Freud da sexualidade, Capuchinho Vermelho aborda temas como as paixões humanas, voracidade oral, agressão e desejos sexuais na puberdade.
Numa primeira análise, é necessário verificar que esta história se destaca pelo momento em que Capuchinho Vermelho perdeu a sua inocência infantil. Isto sucedeu-se quando esta se encontrou frente a frente com os perigos do mundo e do seu subconsciente e trocou-os pela sabedoria que só os que "renascem" possuem: os que não só dominam uma crise existencial, mas também tomam consciência de que era a sua própria natureza que os projetava na crise. Com efeito, quando o lobo se revela e a engole, a criança deixa de existir; “renascendo” num plano superior da existência como uma jovem adulta
quando sai do estômago do mesmo.
Para além disso, o conto destaca-se também pela sua violência, incluindo a que salva a personagem principal e a sua Avó e destrói o Lobo, o conto não mostra às crianças um “mundo cor-de-rosa”, dando-lhes a conhecer um pouco da dureza da realidade.
Adicionalmente, transmite uma lição sobre o dever, uma vez que a história termina quando todas as personagens já cumpriram a sua função: o Lobo tentou escapar e caiu morto; o Caçador salvou as duas mulheres e matou o antagonista; a Avó finalmente pôde comer o que Capuchinho lhe trouxe; e a menina aprendeu a sua lição. Não existe uma conspiração de adultos para forçar o herói a emendar-se como exige a sociedade - um processo que nega o valor da autodireção interna. Ao invés de aprender tendo os outros a fazerem as coisas por ela, a personagem principal desta história é educada através da experiência pessoal, experiência esta que conduz a uma alteração positiva no seu comportamento e ao seu amadurecimento.
Assim, esta versão dos irmãos Grimm possui a convicção da sua mensagem; por conseguinte, não apresenta a necessidade de prender o herói a um modo específico de vida. Não é preciso falar-se sobre o futuro da Capuchinho, uma vez saber que houve um crescimento enquanto pessoa da parte dela é suficiente para que todos os leitores percebam a moral da história.
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