Uma história mal contada - Falsas memórias

 

Uma História, 2 Versões

1. O que são falsas memórias?

2. O Desastre das Pizas Molhadas

Joana:

    « Combinámos passar a tarde em casa da Rita para trabalharmos para psicologia. Fomos para lá à hora de almoço e decidimos encomendar MadPizza. Escolhemos as pizzas, mandámos vir pela UberEats e fomos começar o nosso blog de psicologia.

    Já tinha passado imenso tempo e as pizzas nunca mais chegavam, fomos ver a localização do senhor da UberEats e dizia que ele já estava na nossa rua. Mas não tocava à campainha, continuámos atentos à aplicação e vimos que o estafeta mal se mexia mas que, no entanto, continuava sem nos entregar as pizza. 

    Estava uma chuva torrencial e decidimos ir buscar as nossas pizzas lá a baixo, para o senhor não ficar à chuva. Chamava-se Chander, tinha vindo de bicicleta e teria uma mochila da Uber, era tudo o que sabíamos. Quando chegámos lá a baixo não vimos ninguém, corremos à chuva até à rua paralela e lá vimos debaixo de um prédio um senhor com a mochila de UberEats, tinha de ser o Chander. 

    Fomos as duas ter com ele e perguntámos, meio atrapalhadas, se ele teria o nosso almoço, não respondeu, posso garantir que não abriu a boca, limitou-se a acenar e a tentar perceber o que é que estávamos a dizer. Chander abre a sua mochila verde e aponta, como quem faz um sinal para nós tirarmos as coisas, então, embora eu estivesse meia confusa, lé tirei as pizas da mochila. Quando peguei nelas reparei que a parte de baixo estava completamente ensopada, olhei para a Rita e ela disse “As pizas estão todas molhadas”, Chander voltou a não falar encolheu os ombros e ficou a olhar para nós. Então decidimos voltar para casa e tentar almoçar as pizas. 

    Continuava a chover imenso e a Rita abriu o guarda-chuva, começamos a correr, sempre com aquela sensação de quem vai escorregar na calçada portuguesa. Correr com chuva, pizas na mão e a tentar ficar debaixo do guarda-chuva da Rita não foi fácil. Caíu uma piza. Dei por mim a ver a piza a sair da caixa, tipo gaveta. As caixas estavam tão desfeitas por causa da chuva que não fechavam bem e a piza caiu no meio do chão virada ao contrário. Gritei “Ritaaaa” e ela olhou para trás, mas não teve grande reação; afinal estávamos a ficar encharcadas e eu acabei por decidir pegar na piza e pô-la para cima das outras caixas. Fui a correr para o prédio e quando entrámos em casa estávamos as duas com um ar completamente perdido, começámos a rir e eu quase que chorei. Abrimos as caixas e não havia piza que se aproveitasse. Até fizemos um vídeo para mais tarde recordar aquele momento em que se percebe o caos que foi aquela história. 

    Acabámos por encomendar McDonald`s, já cheias de fome nem pensámos bem e encomendámos à pressa, mas desta vez a comida chegou sem estar molhada e até tocaram à campainha…

    Resumindo encomendar UberEats em dias de chuva torrencial pode não ser boa ideia, especialmente se o estafeta estiver de bicicleta, não souber falar português e se chamar Chander. »

Rita:

   « Em Setembro de 2020, como lindas alunas aplicadas que somos, num dia extremamente chuvoso, eu e a Juca decidimos vir para minha casa a seguir às aulas, de modo a criarmos o blog de Psicologia.

    Como, para além de aplicadas, também somos umas autênticas obesas mentais, achámos ótima ideia pedir pizza para almoçar, ignorando o facto de eu ter sempre um azar desgraçado no que toca a Uber Eats (nunca consegui fazer um pedido que chegasse bem à primeira). Todas contentes, encomendámos do restaurante MadPizza - que é, diga-se de passagem, a (no máximo) 7 mins de minha casa.

    Após 45 MINS à espera (depois de todo o desenvolvimento de uma teoria da conspiração da minha parte de que o nosso UberEats tinha roubado a comida e por isso é que estava a demorar tanto), verificámos que o senhor que trazia as nossas pizzas andava a passear muito perto da minha morada, mas nunca chegava a estar exatamente no sítio indicado; até que finalmente decidiu parar na esquina oposta à minha entrada. Foi então que reparámos que o querido Chander, num dia em que chovia a potes, andava a distribuir comida de bicicleta. Para além disso, também não falava português e, quanto ao inglês, arranhava umas quantas palavras - ou seja, quando tentámos ligar-lhe para dizer-lhe que estava na morada errada, o senhor não percebeu nada. E entretanto já tinha passado, à vontade, 1 hora e um quarto e nós ainda sem almoçar.

    Resultado? Eu e a Juca lá saímos de casa, com um guarda chuva minúsculo, numa missão de busca do grande Chander. Já ensopadas, encontrá-mo-lo na tal esquina e ainda tentámos interagir com ele, dizendo-lhe que estava na entrada errada e apontando para o meu prédio de forma a indicar-lhe a certa. Seria de esperar que o senhor tivesse, então, decidido pegar na sua bicicleta e pedalado até à morada que havia sido colocada na aplicação. Mas não. Oh não.

    Para nosso grande espanto, o Chander pousou a malinha dele NO CHÃO MOLHADO, abriu-a e apontou para umas caixas de pizza absolutamente ensopadas. Nem disse nada, ficou só ali a olhar para nós. Eu e a Juca mal podíamos acreditar. Mas como mais dois segundos e eu passava-me com o homem, pegámos nas pizzas e, com o obrigado mais seco do mundo, retirámo-nos, carregando a encomenda até minha casa A PÉ À CHUVA.

    Mas claro que o nosso azar não ficou por aí. Como já não bastava as pizzas estarem um autêntico lago, a cerca de 4 passos da entrada do meu prédio uma das caixas abriu-se e uma das pizzas estatelou-se no meio do chão. Virada para baixo. (Ou seja, adeus definitivo pizza)

    Nós estávamos FURIOSAS. Chegámos lá acima molhadas que nem um pinto e eu não parava de barafustar e a Juca de rir, até que às tantas já só ríamos as duas que nem loucas, porque era mesmo rir para não chorar. A nossa encomenda? Um fiasco. A que tinha sobrevivido era mais água que pizza, o pão parecia borracha e a caixa estava a desfazer-se de tão molhada.

    Acabámos por simplesmente desistir daquele almoço e, depois de mandarmos uma queixa bastante específica e com direito a provas fotográficas do crime, aventurámo-nos a encomendar Mcdonalds por Ubereats. Esse aí já chegou. Frio e mole, mas chegou. Engraçado como me lembro do nome do Chander, mas não faço ideia de como se chamava o senhor que de facto nos alimentou. »

 

3. Análise   

  • Falsas Memórias: podem ser definidas como lembranças de eventos que não ocorreram, de situações não presenciadas, de lugares jamais vistos, ou então, de lembranças distorcidas de algum evento.  São memórias que vão além da experiência direta e que incluem interpretações, inferências ou, até mesmo, contradizem a própria experiência.

    Assim, realizámos este trabalho para mostrar um exemplo de até que ponto a nossa memória pode ser falível.

    Narrámos, cada uma, um episódio que vivenciámos juntas há pouco mais de 5 meses. Deste modo, apesar de até estarem maioritariamente coerentes e serem visíveis claras semelhanças nos textos, é possível verificar-se também pormenores distintos que dependem da perspetiva e das memórias armazenadas por cada uma.

    Por exemplo, o pequeno pormenor de a Rita ter referido no seu relato a reclamação que fez por email à UberEats e a Joana não. Neste caso, é possível que a falta de menção deste detalhe por parte da Joana se deva não só ao facto de não ter sido ela a escrever a reclamação, mas talvez também por a encomenda ter sido realizada a partir do telemóvel da Rita. 

    Para além disso, segundo estudos realizados com o recurso a ressonâncias magnéticas, experiências negativas estimulam mais áreas do cérebro responsáveis pelo processamento de emoções (como o córtex orbitofrontal e a amígdala cerebral) - o que aumenta consideravelmente a probabilidade de o indivíduo se lembrar desse evento. Assim, é engraçado verificar que, tal como a Rita disse no final do seu texto, ambas nos lembramos do nome do senhor responsável pelo desastre, mas nenhuma faz ideia do nome do estafeta que realmente cumpriu corretamente o seu dever e trouxe o pedido a tempo e em condições. 

    Adicionalmente, é possível destacar-se a existência de algumas incoerências em momentos iguais da história, como é o caso do regresso a casa depois da aquisição da encomenda arruinada. De acordo com a Joana, no episódio da queda da piza no chão ela ia mais atrás e, por isso, aquando o desastre, teve de gritar pela Rita para ela se aperceber do sucedido. De facto, após a leitura do relato da amiga, a Rita concordou que fora isso que acontecera, mas admitiu que, durante a escrita do seu próprio ponto de vista, apenas se tinha lembrado de que a piza caíra, ignorando totalmente o pormenor das posições em que ambas se encontravam - segundo a sua memória, ela tinha visto o incidente a acontecer.

    No seguimento desta ideia, vem o pormenor da reação que julgavam ter tido após a entrada no prédio. Segundo o primeiro texto, supostamente, apenas se riram de desespero e a Joana quase chorou. Por sua vez, no segundo texto verifica-se a referência a outras emoções, como aos sentimentos de raiva e frustração manifestados por parte da Rita, anteriores às gargalhadas provocadas pelo ridículo da situação. Mais uma vez, isto (provavelmente) deve-se ao facto de essas emoções terem sido sentidas apenas por aquela que havia feito o pedido e tem, por natureza, uma personalidade mais explosiva.

    A verdade é que, passados cinco meses, as duas nos conseguimos lembrar bastante bem da história, verificando-se um consenso geral em grande parte dos pormenores. No entanto, existem também, sem qualquer dúvida, óbvias distorções da realidade nos dois relatos - causadas não só pelo próprio processo de armazenamento de memória no cérebro de cada uma, mas também por já termos falado disto com diferentes pessoas que, através dos seus comentários, podem ter influenciado a nossa perceção deste dia.

    Por fim, propomos que realizem também vocês esta experiência, por ser uma forma divertida de  testarem e analisarem a vossa memória! Podem recorrer a amigos, familiares ou conhecidos e vejam se os relatos da mesma história são muito diferentes ou não. Deixamos também aqui um quiz para descobrirem quão falível é a vossa memória.

Sherlock Holmes



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